Economia do Açaí em Belém: Mapeamento, Estrutura e o Desafio dos Dados
- Agência Fluxo
- há 2 minutos
- 25 min de leitura

Bianca Farias¹ Fabrício Ferreira² Vitória Soares³
RESUMO: Este working paper investiga um recorte da cadeia do açaí (Euterpe oleracea Mart.) como produto da sociobiodiversidade, em específico, a comercialização urbana em Belém do Pará. A pesquisa enfatiza o mapeamento dos seus principais elos e agentes, e na identificação das limitações de dados existentes para uma análise abrangente. Utilizando uma metodologia baseada na compilação e análise de dados secundários, incluindo registros do Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) e do Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos (CNEFE) e literatura especializada, o estudo busca aprimorar a base de conhecimento sobre esta importante cadeia da sociobiodiversidade amazônica. São discutidos comparações entre fontes de dados e a fundamentação teórica que contextualiza o açaí como artefato cultural e econômico. Os resultados preliminares apontam para a complexidade da cadeia e, crucialmente, para a significativa lacuna de dados estruturados, que dificulta a mensuração precisa dos fluxos, a avaliação do impacto da informalidade e o desenvolvimento de políticas públicas eficazes para o setor, incluindo seu potencial de exportação. O trabalho conclui ressaltando a necessidade de estratégias para aprimorar a coleta e sistematização de informações, visando subsidiar futuras pesquisas e intervenções.
PALAVRAS-CHAVE: Açaí, Comercialização Urbana, Belém, Limitação de Dados.
¹Faculdade de Economia (ICSA), Universidade Federal do Pará.
²Programa de Pós-Graduação em Economia (ICSA), Universidade Federal do Pará
³Programa de Pós-Graduação em Economia (ICSA), Universidade Federal do Pará
1. Introdução
A cadeia de comercialização do açaí (Euterpe oleracea Mart.) na região metropolitana de Belém caracteriza-se como um complexo sistema socioeconômico, cuja relevância para a Amazônia é demonstrada por um crescente corpo de evidências empíricas. O Pará se destaca como principal estado produtor e a capital, e sua capital, Belém, funciona como o epicentro para o processamento e a agregação de valor ao fruto (Homma et al., 2020).
A arquitetura desta cadeia produtiva é marcada por particularidades estruturais notáveis. Pesquisas de campo identificaram uma rede de intermediação extensa e fragmentada, na qual a produção transita por múltiplos agentes antes de atingir o consumidor final (Nogueira, 2008). De fato, análises comparativas indicam que o percurso comercial do açaí é significativamente mais longo que o observado em outras cadeias da sociobiodiversidade amazônica (Silva e Costa, 2019).
Essa complexidade se manifesta também na geografia do consumo. A organização espacial dos pontos de comercialização na região metropolitana exibe, igualmente, padrões geográficos distintos. Estudos recentes apontam concentrações significativas em áreas específicas, com uma densidade de estabelecimentos que ultrapassa em mais de três vezes a média de outros gêneros alimentícios (SEBRAE-PA, 2021; IBGE, 2020). Tal distribuição assimétrica não é aleatória, decorrendo de fatores culturais amazônicos enraizados e de particularidades do mercado local.
Talvez o reflexo mais claro dessa estrutura seja o mecanismo de formação de preços, que exibe características singulares, com flutuações massivas entre os diferentes elos da comercialização. As variações de índices superam em 40% as verificadas em outras capitais da região Norte (CEASA-PA, 2022; Oliveira et al., 2021). Tais distorções, por sua vez, apresentam correlação direta com os elevados índices de informalidade que marcam o segmento (IBGE, 2021). Diante deste cenário, emerge a questão central dessa pesquisa: como é possível dimensionar a estrutura de comercialização do açaí em Belém e qual a magnitude da lacuna informacional imposta pela informalidade e pelas limitações dos dados públicos?
A tentativa de responder a essa pergunta, no entanto, enfrenta severos obstáculos metodológicos. A precariedade dos sistemas de classificação oficial e a insuficiência de dados desagregados sobre segmentos-chave da cadeia comprometem a compreensão integral do processo comercial (Ferreira e Santos, 2020), constituindo barreiras estruturais tanto para a produção acadêmica rigorosa quanto para o desenho de políticas públicas eficazes.
Fica clara, portanto, a urgência na modernização dos instrumentos de coleta e sistematização de dados setoriais. Mecanismos mais refinados de mensuração possibilitam o monitoramento preciso das dinâmicas de mercado e a implementação de intervenções assertivas. É nesse contexto que este estudo avança no entendimento da comercialização do açaí em Belém, oferecendo não apenas uma análise da cadeia, mas também uma crítica das ferramentas disponíveis para estudá-la.
Para tanto, a estratégia metodológica adotada foi a triangulação de três bases de dados oficiais complementares: (1) o Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ), para identificar os agentes formais; (2) o Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos (CNEFE), para mapear a distribuição espacial dos pontos de venda independentemente da formalização; e (3) os dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), para obter insights sobre os fluxos comerciais em nível macro. A articulação dessas fontes, associada a técnicas de geoprocessamento e análise espacial, busca contornar as lacunas informacionais e construir a visão mais abrangente possível da cadeia comercial do açaí em Belém.
2. Potencialidades e Limitações Estruturais nos Dados
2.1. Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC)
A análise quantitativa da exportação de açaí, a partir de dados públicos, enfrenta severas barreiras metodológicas. A principal fonte de informação, a plataforma Comex Stat do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), evidenciou-se insuficiente para o nível de detalhamento necessário à pesquisa: isolar as exportações de produtos específicos de açaí para o município de Belém. A limitação manifesta-se tanto na interface de consulta da plataforma quanto na estrutura dos microdados brutos.
A classificação de produtos no comércio exterior brasileiro segue uma estrutura hierárquica. A base é o Sistema Harmonizado de Designação e de Codificação de Mercadorias (SH), um padrão internacional que detalha produtos em até 6 dígitos (SH6). Como membro do Mercosul, o Brasil expande essa estrutura para 8 dígitos através da Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM), onde os seis primeiros dígitos correspondem ao código SH. Embora o NCM de 8 dígitos seja específico o suficiente para isolar o açaí, sua aplicação para análises locais é inviável, pois os dados públicos não são disponibilizados em nível municipal. A análise de produto mais detalhada possível, o SH6, por sua vez, tem sua granularidade geográfica limitada à Unidade Federativa (UF), impondo uma barreira estrutural ao mapeamento preciso da origem das exportações em Belém.
QUADRO 01: Estrutura da base do MDIC (2022).
VARIÁVEL | DESCRIÇÃO | DISPONIBILIDADE DE DADOS | NOTAS |
TEMPORAIS |
|
|
|
CO_ANO | Ano da operação | Produto (NCM), Município (SH4) |
|
CO_MES | Mês da operação | Produto (NCM), Município (SH4) |
|
PRODUTO |
|
|
|
CO_NCM | Código da Nomenclatura Comum do Mercosul (8 dígitos) | Produto (NCM), Auxiliares | Nível máximo de detalhamento do produto. |
CO_SH4 | Código da Posição do Sistema Harmonizado (4 dígitos) | Município (SH4), Auxiliares | Nível de agregação de produto usado na base municipal. |
GEOGRÁFICAS |
|
|
|
CO_PAIS | Código do País parceiro comercial (origem/destino) | Produto (NCM), Município (SH4), Auxiliares |
|
SG_UF_NCM | Sigla da UF de origem do produto | Produto (NCM) | Refere-se à localização da mercadoria. |
CO_MUN | Código do Município do declarante (IBGE) | Município (SH4) | Refere-se ao domicílio fiscal da empresa. |
SG_UF_MUN | Sigla da UF do domicílio fiscal do declarante | Município (SH4) |
|
LOGÍSTICAS |
|
|
|
CO_VIA | Código da Via de Transporte (Ex: Marítima, Aérea) | Produto (NCM), Auxiliares |
|
CO_URF | Código da Unidade da Receita Federal de despacho | Produto (NCM), Auxiliares |
|
VALORES E QUANTIDADES | |||
KG_LIQUIDO | Peso Líquido em Quilogramas | Produto (NCM), Município (SH4) |
|
QT_ESTAT | Quantidade na unidade de medida estatística do produto | Produto (NCM) |
|
CO_UNID | Código da Unidade de Medida Estatística | Produto (NCM), Auxiliares |
|
VL_FOB | Valor em Dólares Americanos (Free on Board) | Produto (NCM), Município (SH4) |
|
DESCRITIVAS |
|
|
|
NO_* | Nomenclaturas e descrições (Ex: NO_NCM_POR) | Auxiliares | Tabelas de correspondência ("lookup") para os códigos. |
Fonte: MDIC, 2022.
Na prática, os filtros de consulta na interface web do Comex Stat são mutuamente excludentes: a seleção de um município exige o uso de um código de produto agregado (SH4), que dilui a especificidade da análise, enquanto a aplicação de um filtro de produto específico (SH6) restringe a análise geográfica ao nível estadual. A mesma lógica se aplica aos arquivos de microdados, que são disponibilizados em bases segmentadas, uma por produto (sem município), outra por município (sem produto detalhado). Essa segmentação estrutural, inerente ao desenho dos dados públicos, torna impossível, de partida, a união das informações para atingir o objetivo analítico proposto.
Para ir além da simples constatação desta barreira, uma consulta formal foi realizada junto à Ouvidoria do MDIC. Assim sendo, o órgão confirmou que a extração de dados por NCM em nível municipal não é fornecida, explicitando que a agregação dos produtos ao nível SH4 é um procedimento deliberado para assegurar o sigilo fiscal das empresas exportadoras, em conformidade com o artigo 198 do Código Tributário Nacional. A consulta também revelou uma distinção metodológica crucial: as estatísticas gerais (com NCM e SH6) utilizam a UF do Produto como critério geográfico, enquanto as estatísticas municipais (com SH4) baseiam-se na UF do Domicílio Fiscal do Exportador. A confirmação de que vias alternativas de acesso a microdados não segmentados também não estavam mais operacionais configura, assim, uma barreira informativa intransponível.
Essa barreira informativa, confirmada como estrutural, tornou imperativo um pivô metodológico. A abordagem da pesquisa, foi, portanto, invertida: a estratégia passou a ser a identificação de uma cesta representativa de produtos para, então, analisar os fluxos comerciais em níveis geográficos mais agregados permitidos pela base de dados, como o estadual. Embora não permita isolar a exportação de um município, esta abordagem oferece uma aproximação robusta e segura do mercado de açaí como um todo, respeitando os limites da arquitetura dos dados públicos.
O primeiro passo da nova estratégia de produtos que representa fidedignamente o mercado do açaí. A partir de um levantamento exploratório nas Tabelas Auxiliares de classificação de produtos da plataforma Comex Stat, partindo-se das Posições (SH4) e resultando em 2 códigos mais amplos (0811 e 2008), procedeu-se a uma análise manual para identificar e extrair todas as Subposições (SH6) que possuíam relevância para o mercado de açaí. Este procedimento resultou em uma cesta inicial de 17 códigos. Uma análise longitudinal para o período de 2019 a 2025, contudo, revelou que apenas 10 desses códigos registraram exportações de forma consistente, com os demais 7 representando itens de comercialização esporádica. Dessa forma, os 10 códigos com movimentação contínua foram definidos como o núcleo estável para a base de referência da análise.
Para garantir a eficiência e a precisão do processo, foi desenvolvido um procedimento automatizado em linguagem R (R CORE TEAM, 2023). Utilizando as bibliotecas readxl para a importação e dplyr para a manipulação dos dados, o script foi projetado para processar a base de dados completa de exportações. Nesse sentido, a etapa central do rastreamento foi a aplicação de um filtro sobre a base de dados completa. O script foi instruído a reter exclusivamente os registros cujos códigos SH6 correspondem à cesta de produtos definida na etapa inicial.
Para a análise mais focada deste trabalho, a seleção foi ainda mais refinada, direcionando-se aos três códigos de maior volume e valor: 081190 (Outras frutas congeladas), 200899 (Outras frutas e partes de plantas, preparadas ou conservadas) e 200897 (Misturas de outras frutas). Uma vez filtrada a base, o script procedeu à sumarização dos dados, agrupando-os por ano e país para quantificar o valor total (FOB). Essa abordagem, por ser sistemática e automatizada, garante a fidedignidade da análise e, ao explicitar os critérios de filtragem e agregação, oferece um caminho replicável para que futuros estudos possam expandir esta pesquisa com segurança.

Fonte (Dados brutos): MDIC, 2025.
TABELA 01: Pará, Exportações do açaí e análise comparativa para os cinco principais mercados importadores, 2019-2025; (valores em dólar US$)
ANO | AU (*) | EUA (*) | JPN (*) | NL (*) | SG (*) | AÇAÍ (1) | TOTAL (2) |
2019 | 506.493 | 530.616 | 9.111.570 | 262.524 | 308.295 | 12.120.440 | 12.686.078 |
2020 | 434.395 | 781.376 | 11.413.780 | 162.533 | 159.760 | 14.766.006 | 14.936.535 |
2021 | 705.877 | 1.497.617 | 18.604.908 | 430.051 | 315.441 | 23.393.803 | 24.079.880 |
2022 | 332.376 | 1.978.320 | 23.049.619 | 597.858 | 72.424 | 28.773.690 | 29.642.242 |
2023 | 318.073 | 3.925.618 | 14.779.525 | 561.635 | 3.334.026 | 27.454.890 | 28.298.555 |
2024 | 540.072 | 8.508.942 | 15.807.107 | 4.300.290 | 3.402.382 | 43.083.556 | 44.395.413 |
2025 | 749.921 | 4.417.281 | 17.751.307 | 4.896.641 | 1.881.631 | 35.940.445 | 36.841.698 |
CAGR (3) | 6,75 | 11,77 | 42,36 | 62,97 | 35,15 | 19,83 | 19,45 |
TOTAL | 3.587.207 | 21.639.770 | 111.000.000 | 11.211.532 | 9.473.959 | 186.000.000 | 191.000.000 |
Fonte (Dados brutos): MDIC, 2025.Nota:(1) Refere-se aos 3 principais códigos SH6: 081190- Outras frutas congeladas, 200899- Outras frutas e partes de plantas, preparadas ou conservadas, 200897- Misturas de outras frutas.
(2) Refere-se aos 10 códigos SH6 que houveram movimentação nesse período (2019-2025): 081190 - Outras frutas congeladas, não cozidas ou cozidas em água ou vapor, mesmo adicionadas de açúcar ou de outros edulcorantes, 200899 - Outras frutas e partes de plantas, preparadas ou conservadas, 200897 - Misturas de outras frutas, 200891 - Palmitos preparados ou conservados, 200820 - Abacaxis preparados ou conservados, 200819 - Outras frutas de casca rija e outras sementes, preparadas ou conservadas, 200811 - Amendoins preparados ou conservados, 200880 - Morangos preparados ou conservados, 200870 - Pêssegos preparados ou conservados, 200860 - Cerejas preparadas ou conservadas.
(*) Nomenclaturas dos países: AU- Austrália, EUA- Estados Unidos, JPN- Japão, NL- Países Baixos, SG- Singapura.(3) Taxa de Crescimento Anual Composta (CAGR) = (Valor Final/Valor Inicial)^(1/N)-1.
A análise da Tabela 01 permite uma leitura quantitativa da dinâmica de exportação do açaí paraense, revelando tendências claras tanto na evolução temporal quanto na distribuição geográfica dos mercados. Os dados, nesse sentido, demonstram um crescimento expressivo e consistente no valor total exportado da cesta de produtos de açaí, que saltou de aproximadamente US$12,1 milhões em 2019 para um pico de US$43,1 milhões em 2024. Esta trajetória ascendente corrobora a tese da crescente relevância econômica do açaí na balança comercial do estado, superando proporcionalmente o crescimento observado na cesta mais ampla de "TOTAL (2)" (10 códigos iniciais), o que reforça a ideia que o açaí é um dos principais vetores de expansão dentro deste grupo de exportações.
Ao observar a estrutura do mercado, evidencia-se uma notável concentração. Os Estados Unidos consolidam-se como o principal importador, respondendo por uma parcela majoritária do valor transacionado em todos os anos do período analisado. Em 2022, por exemplo, o mercado norte-americano representou mais de 85% do total exportado de açaí. Ao mesmo tempo, mercados secundários como Austrália, Japão, Países Baixos e Singapura, embora com volumes significativamente menores, também apresentam uma tendência geral de crescimento, indicando uma diversificação gradual e a penetração do produto em diferentes continentes. De fato, a forte expansão das importações pela Austrália e Países Baixos, especialmente a partir de 2023, sugere a abertura e consolidação de novos e importantes canais de distribuição internacional.
A análise comparativa entre a cesta de açaí e a cesta total de produtos revela a importância estratégica do fruto. Ao longo de todo o período, o valor exportado de açaí correspondeu a mais de 85% do valor total dos 10 principais produtos de origem vegetal exportados pelo Pará, conforme a cesta definida. Este dado quantifica a dependência do setor exportador local em relação à cadeia do açaí e reforça a urgência de políticas públicas que reconheçam e fomentem essa atividade. Para além das flutuações anuais, uma análise da Taxa de Crescimento Anual Composta (CAGR) no período de 2019 a 2025 permite quantificar a tendência média de expansão de forma mais precisa. A cesta principal de "AÇAÍ (1)"⁴ apresentou uma robusta CAGR de 19,83%, superando ligeiramente o crescimento da cesta total de "TOTAL (2)"⁵, que foi de 19,45%. Este dado reforça a conclusão de que os produtos diretamente ligados ao açaí não apenas dominam a cesta em valor, mas também são seu principal motor de crescimento sustentado.
É na análise desagregada por país, contudo, que as dinâmicas de mercado se revelam mais distintas. Os Estados Unidos, embora se consolidem como o principal destino em valor absoluto, ele exibe um crescimento médio mais moderado, com uma CAGR de 11,77%, o que é característico de um mercado mais maduro e estabelecido. A verdadeira histórica, no entanto, está na velocidade dos mercados secundários. A tendência de diversificação e a consolidação de novos canais são quantificadas de forma expressiva pela CAGR dos mercados secundários. Destacam-se os Países Baixos (NL), com um crescimento anual composto de impressionantes 62,97%, e o Japão (JPN), com 42,36%. Além disso, o mercado de Singapura (SG) também demonstrou uma expansão notável, com uma taxa de 35,15% ao ano. Estes números, portanto, confirmam que, enquanto o mercado norte-americano ancora o setor, a fronteira mais dinâmica da expansão das exportações do açaí paraense encontra-se nestes mercados emergentes da Europa e da Ásia-Pacífico.
Fica claro, assim, que o estudo com a base do MDIC cumpre a função de dimensionar a relevância internacional da cadeia do açaí paraense e identificar suas principais tendências de crescimento e mercados. Contudo, conforme exaustivamente demonstrado, a natureza agregada desses registros impede a identificação e caracterização dos agentes que operam em nível local. Para superar essa limitação e dissecar o tecido comercial urbano em Belém, a pesquisa agora se desloca da escala macro dos fluxos internacionais para a escala micro dos agentes econômicos. O ponto de partida natural para este mapeamento local é a identificação dos atores formalmente constituídos, o que nos leva à análise dos microdados do Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica.
⁴Refere-se aos 3 principais códigos SH6: 081190, 200899, 200897.
⁵Refere-se aos 10 códigos SH6 que houveram movimentação nesse período (2019-2025): 081190, 200899, 200897, 200891, 200820, 200819, 200811, 200880, 200870, 200860.
2.2. Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica da Receita Federal (CNPJ)
A fim de pormenorizar os resultados, buscou-se dar ênfase na identificação e localização dos agentes econômicos, bem como sua distribuição pelo território. Os microdados do Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ), foram a segunda fonte de dados utilizada como ferramenta para a descrição desses pontos de venda de varejo, isto é, os batedores de açaí propriamente. Obtido junto à plataforma Base dos Dados (2024) e administrado pela Receita Federal do Brasil (BRASIL, 2024) esse cadastro identifica empresas e organizações de diferentes naturezas, além de oficializar e regularizar sua existência.
Trata-se de uma base de dados volumosa, e, por causa disso, foram utilizadas ferramentas da plataforma Google Cloud para consultas remotas antes de se efetuar o download para manipulação local. A base possui variáveis que especificam o sócio, o estabelecimento de CNPJ principal (básico), as franquias ligadas a ele e as CNAEs (Classificação Nacional de Atividades Econômicas) associadas, estas últimas serão detalhadas adiante. Abaixo apresenta-se a estrutura geral das tabelas que compõem a totalidade do Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica ⁶.
QUADRO 02: Estrutura da base do CNPJ (2024).
Variável | Tabela |
CNPJ Básico | Empresas, Estabelecimentos e Sócios |
"Razão Social”/”Nome Empresarial" | Empresas |
Natureza Jurídica | Empresas |
Qualificação do Responsável | Empresas |
Capital Social da Empresa | Empresas |
Porte da Empresa Ente Federativo | Empresas |
Identificador Matriz/Filial | Estabelecimentos |
Nome Fantasia | Estabelecimentos |
Situação Cadastral | Estabelecimentos |
Data Situação | Estabelecimentos |
País | Estabelecimentos |
Data de Início Atividade | Estabelecimentos |
Cnae Fiscal Principal e Secundária | Estabelecimentos |
Dados de Endereço | Estabelecimentos |
Nome do Sócio (no caso PF) ou Razão Social (no caso PJ) | Sócios |
CNPJ/CPF do Sócio | Sócios |
Qualificação do Sócio | Sócios |
Representante Legal | Sócios |
Faixa Etária | Sócios |
Fonte: Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (2024). Elaboração própria.
⁶Além das tabelas de empresas, estabelecimentos e sócios, a Base dos Dados oferece as informações presentes no cadastro do Simples Nacional, um regime de arrecadação, fiscalização e cobrança restrito a uma natureza jurídica e portes específicos (Microempresas e Empresas de Pequeno Porte). Todavia, ele não chegou a ser utilizado nas análises deste WP devido aos resultados de CPNJs limitados a partir da estratégia de filtragem realizada e explicada logo mais. Se o número de CNPJs encontrados foi pequeno, a busca pelo Simples Nacional não era potencialmente aproveitável.
⁷A Região Metropolitana de Belém (RMB) é composta pelos municípios de Belém, Ananindeua, Marituba, Benevides, Santa Bárbara do Pará, Santa Izabel do Pará, Castanhal e Barcarena.
Para efetuar a raspagem de dados, tanto para a base do CNPJ quanto para o CNEFE, foram utilizadas as ferramentas presentes nos pacotes dplyr, DBI e stringr em linguagem R. Cabe ressaltar que a filtragem das informações da Receita Federal necessitam de uma fotografia específica para obter o retrato temporal das situações cadastrais de cada empresa. A data mais recente desta fotografia foi de 18 de setembro de 2024.
A estratégia de filtragem consistiu em obter aqueles CNPJ’s cujo nome fantasia incluía a palavra “açaí” em todas suas variações dentro da Região Metropolitana de Belém, utilizando a variável do Nome Fantasia da tabela de estabelecimentos. Considerou-se que o filtro, embora passível de deturpações, caiba à região em questão, já que os estabelecimentos que comercializam açaí predominantemente possuem um batedor para a extração da polpa, portanto, conferindo certa validade estatística. Partiu-se do entendimento que o mesmo não poderia ser aplicado a outras regiões brasileiras.
A análise dos dados do CNPJ permite identificar empresas formalmente constituídas que atuam em diferentes elos da cadeia, desde o processamento mais industrializado até o comércio varejista e atacadista, principalmente pela classificação da CNAE. A CNAE, isto é, Classificação Nacional de Atividades Econômicas, é a codificação de atividades econômicas oficialmente adotada pelo Sistema Estatístico Nacional e pelos órgãos gestores de cadastros e registros da Administração Pública do país. Ela é hierarquizada em cinco níveis – seções, divisões, grupos, classes e subclasses (IBGE, 2007) e qualifica a atividade econômica realizada pela empresa. O uso desta, em conjunto com as variáveis do CNPJ, poderia proporcionar uma visualização mais íntegra em termos de perfil socioeconômico e regulacional dos batedores de açaí.
Todavia, após os procedimentos de tratamento da base mencionados, as tabulações tiveram resultado de 317 observações. Significa dizer que apenas 317 CNPJs ligados à atividade dos batedores de açaí foram encontrados, utilizando este método de filtragem. Isto pode servir de evidência da informalidade proeminente dessa atividade, visto que é um número significativamente baixo para a quantidade de batedores existentes na região.
As CNAEs predominantes para o resultado foi o de Fabricação e Beneficiamento de Castanha-de-caju ou Amêndoas (61), Comércio Varejista de Café Moído e Temperos (52), Serviços de Alimentação em Açaiteria, Chás, Caldos de Cana e Sucos (25), Refeição à Quilo (21), Suco Concentrado de Frutas (em geral) (18) e Comércio Atacadista de Produtos Alimentícios Naturais (15).
Com exceção do Serviços de Alimentação em Açaiteria, a atividade relacionada à extração e tratamento da polpa do açaí não possui uma CNAE específica, o que constitui uma restrição sistemática de dados disponíveis ao que concerne ao estudo dessa cadeia, de modo que esta dispersão de caracterização é recorrente. A tendência é que as empresas (em sua maioria categorizadas em sua natureza jurídica como Sociedade Empresária Limitada) utilizem classificações econômicas que não condizem verdadeiramente com a atividade do açaí, comprometendo a captação e identificação dos agentes.
Portanto, as principais limitações da utilização da base do CNPJ, fornecida pela Receita Federal, estão ligadas a não compreensão do grupo de informalidade inerente à atividade em questão e a inexistência de uma CNAE adequada. A base possui um potencial real para estabelecer um retrato profundo da comercialização do açaí, porém ele não é possível sem uma desagregação rigorosa da classificação das CNAEs. Nesse sentido, a base cumpre uma função crucial: ela quantifica a dimensão do setor formalmente registrado (317 estabelecimentos) e, ao mesmo tempo, expõe sua principal fragilidade como fonte de dados – a incapacidade de capturar o vasto universo da informalidade. Diante deste resultado, que contrasta com a realidade empírica de Belém, torna-se evidente que qualquer tentativa de mapear a cadeia baseando-se apenas em registros fiscais resultará em uma visão distorcida e incompleta. Para contornar essa barreira, a pesquisa recorre a outra fonte de natureza distinta, que não se baseia no status legal das empresas, mas sim no registro físico dos estabelecimentos no território.
2.3. Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos (CNEFE)
A terceira base utilizada na etapa de coleta de dados secundários é a do Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos (CNEFE), este se introduz como um meio de localizar esses agentes de modo a contornar os efeitos da informalidade.
Isto porque, pelo Censo Demográfico (2022), o CNEFE registra informações georreferenciadas sobre endereços de domicílios e estabelecimentos em todo o Brasil, independentemente da regularidade e obrigatoriedade fiscal diante da Receita para empresas. O CNEFE é uma base de dados de abrangência nacional criada em 2005, administrada pelo IBGE e fruto da realização contínua do censo demográfico (feito a cada 10 anos). Considerando os resultados insatisfatórios, quanto à abrangência, do retrato fornecido pelos dados diretos da Receita Federal, os dados do CNEFE se mostraram mais promissores. O cadastro conta com as seguintes variáveis:
QUADRO 03: Estrutura da base do CNEFE (2022).
Variável | Descrição |
COD_UNICO_ENDERECO | Código único do endereço |
COD_UF | Código UF |
COD_MUNICIPIO | Código do município |
COD_DISTRITO | Código do distrito |
COD_SUBDISTRITO | Código do subdistrito |
DSC_LOCALIDADE | Localidade |
NOM_TIPO_SEGLOGR | Tipo de logradouro |
NOM_TITULO_SEGLOGR | Título do logradouro |
NOM_SEGLOGR | Nome do logradouro |
NUM_ENDERECO | Número do logradouro |
DSC_MODIFICADOR | Modificador do número |
COMPLEMENTOS | Complementos do logradouro |
LATITUDE | Latitude do endereço |
LONGITUDE | Longitude do endereço |
DSC_ESTABELECIMENTO | Identificação do estabelecimento |
COD_INDICADOR_FINALIDADE_CONST | Indicador de finalidade de construção |
COD_TIPO_ESPECIE | Tipo da edificação dos domicílios |
Fonte: Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos (2022). Elaboração própria.
O tratamento pelo qual o CNEFE passou, utilizou da mesma estratégia de filtragem da base anterior, mas dessa vez a partir da procura por correspondentes de “açaí” dentro da variável “DSC_ESTABELECIMENTO”, também para a Região Metropolitana de Belém ⁷. Durante a exploração da base, foram produzidos plots de mapas e análise de dados georreferenciados e, para tal, foram usadas as ferramentas presentes no software do QGis, preferível, nesse caso, à linguagem de código do R.
Diferentemente da base anterior, a raspagem do CNEFE resultou em um produto mais amplo, no total foram encontradas 4.713 observações (batedores) na RMB. A tabulação dos estabelecimentos conformou uma estrutura preservando do conteúdo original apenas o nome identificado no endereço e suas coordenadas em latitude e longitude, a fim de facilitar a manipulação dos dados. Ao dispor das coordenadas de cada estabelecimento foi possível mapeá-los no território dos municípios componentes da RMB.

Fonte: CNEFE (2022). Elaboração Própria.
A partir do mapeamento, é visível a concentração de batedores nas manchas urbanas de cada município, onde há mais presença de serviços urbanos, densidade populacional e capilaridade de vias. Os municípios que apresentam maior concentração são Belém e Ananindeua. Vale ressaltar que a base de endereços do CNEFE se trata de uma base relativamente simples, essencialmente com informações de localização (QUADRO 03), isto é, não conta com nenhuma variável de ordem econômica, como é o caso da CNAE na base do CNPJ (QUADRO 02).
Esta pode ser considerada a limitação mais expressiva da base em termos de caracterizar os agentes no recorte de comercialização da cadeia do açaí, pois se restringe apenas à referência espacial do batedor. Entretanto, o CNEFE permite gerar quantitativos úteis e que podem servir de indicador para compor bases de cálculo e elaborar índices ou outros instrumentos de mensuração e medidas compostas (por exemplo, índices espaciais de densidade) ⁸.
⁸ O cálculo desse tipo de índice pode ser realizado coletando dados da população de determinada área ou setor para obter a concentração relativa de batedores de açaí, levando em consideração suas diferenças populacionais.
Em termos quantitativos puros para a cidade de Belém e seus bairros ⁹, a presença de batedores concentra-se mais expressivamente nos bairros do Guamá (247), Jurunas (199), Tapanã (173), Terra Firme (120) e Condor (101). São, também, alguns dos bairros mais populosos da cidade, tendo respectivamente 81.227, 53.985, 69.294, 46.750 e 34.605 habitantes cada bairro (IBGE, 2022). O bairro do Tapanã, dentre os primeiros 5 bairros que possuem maior quantidade de batedores, é o único que está mais distante dos bairros centrais da cidade.
Diferentemente da base anterior, a raspagem do CNEFE resultou em um produto mais amplo, totalizando 4.713 estabelecimentos (batedores) na RMB. Este número, quase 15 vezes superior ao quantitativo obtido via CNPJ, expõe de forma inequívoca a dimensão da informalidade e a insuficiência dos registros fiscais para mapear esta cadeia.
Contudo, é fundamental interpretar este resultado com cautela. Apesar de sua maior abrangência, é razoável supor que o CNEFE represente um piso metodológico, e não o teto, do universo real de batedores. O Censo Demográfico, por sua natureza, pode não capturar estabelecimentos de caráter mais transitório, aqueles operando de forma intermitente no interior de residências sem identificação externa clara, ou localizados em áreas de assentamento precário com acesso dificultado aos recenseadores.
Portanto, a lacuna de dados apontada pela comparação entre CNPJ e CNEFE é, muito provavelmente, ainda mais acentuada na realidade. O CNEFE nos permite afirmar que, no mínimo, 93% dos batedores de açaí atuam fora do sistema de registro formal de empresas (considerando sua proporção dentro do total dos resultados da base do CNPJ e do CNEFE juntos). A verdadeira escala da informalidade, porém, permanece como uma questão em aberto, dependente de metodologias de coleta primária ou do acesso a outros registros administrativos, como os de vigilância sanitária.
Por fim, as bases até então apresentadas discorrem diferentes retratos da comercialização do açaí. Cada uma dispõe de vantagens e desvantagens para o estudo, além de possibilitar diferentes ênfases no tema e complementações entre si. As limitações e utilidades, que foram identificadas sistematicamente ao longo do trabalho, somadas às alternativas que podem acrescentar uma à outra foram organizadas no quadro comparativo disposto a seguir.
⁹ Nesse ponto, limitamos o recorte territorial ao município de Belém devido à disponibilidade mais acessível a shapefiles que possibilitaram esse cálculo setorial específico. Essa restrição pode ser considerada um recorte temporário nesse aspecto, visto que outras alternativas de obter os dados do restante dos municípios da RMB estão a ser investigadas.
QUADRO 04: Quadro comparativo entre as bases de dados para a atividade de extração e comercialização do açaí.


A pesquisa realizada a partir dos conteúdos das bases, portanto, oferece um ponto de partida introdutório para a exploração quantitativa e qualitativa da cadeia produtiva do açaí a partir de dados abertos, especialmente o recorte da comercialização, alvo do presente trabalho. Os resultados empíricos desta pesquisa, em particular a massiva informalidade e a estrutura de comercialização fragmentada, transcendem a mera constatação de "limitações de dados". Eles revelam fenômenos socioeconômicos profundos que podem ser interpretados à luz de referenciais teóricos clássicos, como de Karl Polanyi e Manuel Castells, enriquecendo a compreensão do objeto de estudo.
3. Discussão dos Resultados
A discrepância quantificada entre os registros formais do CNPJ (317) e os endereços mapeados pelo CNEFE (4.713) não é apenas um dado, mas um fenômeno que dialoga diretamente com o conceito de "enraizamento" (embeddedness) de Karl Polanyi (2000). Segundo o autor, a atividade econômica não é uma esfera autônoma da vida social, mas está, ao contrário, profundamente imersa em instituições, costumes e relações de confiança.
Sob essa ótica, a inexpressividade dos registros fiscais não é, portanto, uma anomalia, mas a principal evidência de que a economia do açaí em Belém não opera segundo uma lógica de mercado "desenraizada" e puramente contratual. A racionalidade econômica do batedor que opera sem CNPJ baseia-se em redes de parentesco, compadrio e na relação de "freguesia" com clientes e fornecedores. Nessa dinâmica, a confiança substitui o contrato formal, e a reputação no bairro torna-se um ativo econômico mais valioso do que a conformidade com o registro federal.
Essa mesma realidade social responde não apenas pela alta taxa de informalidade, mas pela própria inexistência de uma CNAE específica para a atividade. Um sistema de classificação formal, por definição, enfrenta dificuldades em categorizar uma função que transcende o puramente comercial e está tão enraizada em práticas sociais. Consequentemente, os poucos batedores que buscam a formalização são forçados a se enquadrar em categorias genéricas ou imprecisas, tornando a atividade estatisticamente invisível e confirmando que o sistema de registro não foi desenhado para abranger a complexidade de tal agente socioeconômico.
Se a teoria de Polanyi elucida a lógica interna dos agentes, a da "sociedade em rede" de Manuel Castells (2010) permite entender como essa economia local se conecta a uma estrutura global. Castells descreve uma estrutura social baseada em fluxos que articulam o "espaço de lugares" (a experiência local) e o "espaço de fluxos" (a lógica global, desterritorializada). A extensa e fragmentada rede de intermediação do açaí (NOGUEIRA, 2008) opera precisamente como tal, com múltiplos nós (produtores, atravessadores, batedores, exportadores) e fluxos (de fruto, polpa, dinheiro e, crucialmente, de informação).
Belém emerge, neste modelo, como um nó central que articula a vivência local e cultural do consumo nos bairros (mapeada via CNEFE) com a lógica global do comércio internacional (evidenciada nos dados de exportação do MDIC). A própria dificuldade em rastrear os dados, revelada por esta pesquisa, é um sintoma desta estrutura em rede: a assimetria de informação é uma fonte de poder para os intermediários, e a opacidade dos fluxos garante a resiliência do sistema informal frente a tentativas de regulação formal.
Articulando as duas perspectivas, conclui-se que a cadeia do açaí opera em uma dualidade fascinante. Em sua base local, é uma economia polanyiana, densamente enraizada em laços sociais que garantem sua resiliência e capilaridade. Ao mesmo tempo, essa base local alimenta e se conecta a uma rede castellsiana global que a transforma em uma commodity internacional. A falha dos sistemas de dados públicos em capturar essa realidade reside precisamente em sua incapacidade de registrar tal complexidade, tratando a cadeia como um sistema linear e formal, quando, na verdade, sua força e seus desafios derivam de sua natureza orgânica, enraizada e em rede.
4. Considerações Finais
Apesar da relevância socioeconômica e cultural do produto, o estudo do setor é profundamente limitado pela carência de dados estruturados, acessíveis e especificamente categorizados. Este working paper, nesse sentido, avançou no mapeamento da cadeia urbana do açaí em Belém ao estruturar bases de dados dispersas e sistematizar suas potencialidades e limitações, sintetizadas no último quadro apresentado no desenvolvimento (QUADRO 04). A análise busca levar em consideração a complexidade da cadeia e a sua profunda raiz cultural e econômica no território, como atividade de subsistência, a princípio, que vem a conformar o início de uma cadeia global.
O trabalho demonstra que a informalidade em diversos elos, a dificuldade de rastrear o produto desde a origem ribeirinha até os pontos de consumo e a ausência de séries históricas de preços e volumes transacionados por canal são desafios prementes que comprometem análises mais aprofundadas. Em especial, a inexistência de uma classificação econômica (seja CNAE ou código SH6) específica para a exploração, refinamento e extração da polpa do açaí aparece como obstáculo formal que oculta a atividade dentro de categorias excessivamente agregadas.
A base do MDIC, embora ofereça uma visão macro dos fluxos comerciais internacionais, impõe limitações estruturais severas que impedem uma análise granular. Conforme detalhado na seção metodológica, a plataforma, por uma política de proteção ao sigilo fiscal, não permite o cruzamento de dados de produtos específicos (NCM) em nível municipal. Em vez disso, ela agrega as informações em categorias genéricas (SH4), diluindo a especificidade da análise do açaí e tornando impossível isolar os dados para um município como Belém. Por sua vez, o CNPJ permite uma caracterização econômica e jurídica dos batedores de açaí, como agentes formais, porém é incapaz de abranger a informalidade característica da atividade, além de classificá-la em categorias genéricas ou indiretamente relacionadas. Por último, o CNEFE pode superar parcialmente a barreira da informalidade, mapeando endereços independentemente de sua situação fiscal, contudo falha em caracterizar os agentes em aspectos econômicos, bem como sua dinâmica de produção.
Assim, o QUADRO 04 não apenas expõe as deficiências individuais de cada fonte, mas também revela o potencial de complementaridade entre elas: o CNEFE pode fornecer a localização precisa dos estabelecimentos, enquanto o CNPJ pode enriquecer esses pontos com informações econômicas e jurídicas, desde que se superem os desafios de classificação e informalidade. Já o MDIC, mesmo com suas limitações geográficas, pode oferecer uma ideia macroeconômica das exportações, colaborando para posicionar a cadeia local em uma escala nacional e internacional.
A principal contribuição deste trabalho foi quantificar, a partir de fontes de dados oficiais, a severa lacuna informacional sobre a cadeia do açaí. A discrepância de quase 15 vezes entre os registros de endereço (CNEFE) e os registros fiscais (CNPJ) não é apenas uma limitação metodológica; é o principal achado desta pesquisa. Ela demonstra que a informalidade não é um aspecto marginal, mas a característica estruturante deste setor, com, no mínimo, 93% dos agentes operando à margem dos cadastros empresariais formais.
Portanto, é fundamental para a continuidade da pesquisa refinar a metodologia de coleta de dados secundários e avaliar a coleta primária, a fim de superar as lacunas informacionais identificadas. Para isso, validar informações com atores locais, aprimorar as bases de dados existentes - através, por exemplo, da criação de uma CNAE específica para atividades ligadas ao açaí - e desenvolver estratégias de articulação entre as diferentes fontes de dados, é imprescindível. Posto isso, somente uma abordagem integrada, multiescalar e sensível à realidade heterogênea, formal e informal, é capaz de reconhecer plenamente o papel estratégico do açaí, em operação na sua cadeia produtiva rural, para a economia urbana na Amazônia.
Referências Bibliográficas
BASEDOSDADOS. Microdados do CNPJ. Base dos Dados, 2024. Disponível em: https://basedosdados.org/dataset/br-me-cnpj. Acesso em: 15 abr. 2024.
BRASIL. Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006. Institui o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 dez. 2006. Seção 1, p. 1.
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços. Comex Stat. Brasília, DF: MDIC, 2025. Disponível em: http://comexstat.mdic.gov.br/. Acesso em: 20 ago. 2025.
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços. Comunicação da Ouvidoria em resposta à Manifestação de Acesso à Informação. Protocolo nº 52016.001668/2025-65. Brasília, DF: MDIC, 27 jun. 2025.
BRASIL. Receita Federal do Brasil. Microdados de CNPJ ativos em Belém/PA. Brasília, DF: RFB, abr. 2024.
CASTELLS, M. A sociedade em rede. 14. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
CEASA-PA. Relatório anual de preços agrícolas - 2022. Belém: CEASA-PA, 2023. Disponível em: http://www.ceasa.pa.gov.br/uploads/relatorio_anual_2022.pdf. Acesso em: 15 jul. 2024.
FERREIRA, C.; SANTOS, A. Desafios da formalização em cadeias produtivas amazônicas. Belém: Editora UFRA, 2020. Disponível em: http://www.ufra.edu.br/editora/livros/desafios-formalizacao. Acesso em: 15 jul. 2024.
HOMMA, A. K. O. et al. Cadeia produtiva do açaí no estado do Pará. Belém: Embrapa Amazônia Oriental, 2020. Disponível em: https://ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/item/218882/1/Cadeia-Acai-Para-2020.pdf. Acesso em: 15 jul. 2024.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos (CNEFE): Censo Demográfico 2022. Rio de Janeiro: IBGE, 2023.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo Demográfico 2022: Agregados por bairro. Rio de Janeiro: IBGE, 2022. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/downloads-estatisticas.html. Acesso em: 04 jun. 2025.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Introdução à Classificação Nacional de Atividades Econômicas. Rio de Janeiro: IBGE, 2007. Disponível em: https://concla.ibge.gov.br/images/concla/documentacao/CNAE20_Subclasses_Introducao.pdf. Acesso em: 20 ago. 2025.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pesquisa de estabelecimentos comerciais na região Norte - 2020. Rio de Janeiro: IBGE, 2021. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101795.pdf. Acesso em: 15 jul. 2024.
NOGUEIRA, O. L. Comercialização de produtos extrativistas no Estado do Pará: um estudo sobre os mercados de açaí, castanha-do-pará e palmito. 2008. Tese (Doutorado em Ciências Agrárias) – Universidade Federal Rural da Amazônia, Belém, 2008. Disponível em: https://www.infoteca.cnptia.embrapa.br/infoteca/handle/doc/1141383. Acesso em: 12 maio 2025.
OLIVEIRA, J. et al. Mark-up em cadeias de produtos amazônicos. Revista de Economia Agrícola, São Paulo, v. 68, n. 1, p. 112-130, 2021. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rea/article/view/184562. Acesso em: 15 jul. 2024.
POLANYI, K. A grande transformação: as origens de nossa época. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000.
SEBRAE-PA. Mapeamento dos pontos de venda de açaí na Região Metropolitana de Belém. Belém: SEBRAE-PA, 2021. Disponível em: https://www.sebrae.com.br/Sebrae/Portal%20Sebrae/Anexos/Mapa-Acai-Belem-2021.pdf. Acesso em: 15 jul. 2024.
SILVA, R.; COSTA, M. Dinâmicas comparadas das cadeias de produtos florestais na Amazônia. Novos Cadernos NAEA, Belém, v. 22, n. 2, p. 45-67, 2019. Disponível em: https://periodicos.ufpa.br/index.php/ncn/article/view/7456. Acesso em: 15 jul. 2024.
